CIRIO DE NAZARÉ
o maior evento religioso do mundo
Eram às três horas de madrugada
do dia do Círio, segundo domingo de outubro 2013. A Santa, a imagem de Nossa
Senhora de Nazaré, estava no seu pedestal, bem protegida por um cofre de vidro,
à vista de todo o povo que madrugava na praça esperando o momento da Santa
Missa e do 221. mo Círio de Nossa Senhora de Nazaré.
Todo mundo sabe que a devoção do
povo quer tocar a santa, quer estar mais perto possível da Santa, ninguém
segura a força da devoção popular. E também naquela silenciosa noite o povo com
calma queria tocar pelo menos o vidro que defendia a Santa, subindo no palco.
Mas os guardas não permitiam, afastavam rapidamente os devotos, atrevidos.
De repente, a redoma de vidro de proteção à imagem estourou, sem que
ninguém a tocasse, o vidro estilhaçou no chão. “É sinal que a Santa quer ficar
perto do povo e não presa como querem que ela fique” disseram as testemunhas
presentes.
Às 04,30 eu estava no palco,
estranhei de ver a Santa, livre, sem proteção. Fui lá, os dois guardas me
deixaram, toquei a Santa pela primeira vez, toquei a imagem como se todos os
amigos xaverianos a tocassem, rezei, pedi graças, bati foto para satisfazer a minha
vaidade (o guarda mesmo usou a minha maquina fotográfica) e, tranquilo e feliz
no meu íntimo, fui sentar nas cadeiras reservadas aos padres, continuando a
minha preparação à santa missa. Não podia imaginar que a santa tivesse quebrado
o vidro para estar mais perto do seu povo. Pensei em papa Francisco que dizia:
“o segurança fecha o vidro do carro e eu o abro para poder apertar a mão do
povo. Vim para estar com o povo e me querem colocar numa gaiola de vidro, não
vale”.
Estava observando as pessoas que
seguram a imagem da Santa, nas transmissões oficias. São os bispos, os
diretores do Círio... Nunca vi uma mulher segurar a santa naquelas grandes
liturgias televisivas. Desculpe, vi sim milhares de mulheres segurando a
santinha nas casas. Aí quem manda são elas, as nossas mães, as nossas irmãs, as
nossas velhinhas. Com as lágrimas nos olhos elas seguram a imagem, beijam a
imagem como beijavam os filhos quando criança.
Apresentam a imagem a todos os participantes das peregrinações. Contava-me
o pe. Zezinho, o padre maior dos Xaverianos da Amazônia. Em Moju era costume
que o prefeito e os políticos levassem o símbolo do Espírito Santo, padroeiro
da cidade, do altar até ao andor para começar a procissão, no dia da
festividade. Como livrar-se desta tradição? O Espírito Santo repentinamente
colocou na mente de Zezinho uma inspiração. Era o ano da mulher e o padre
gritou do altar: “É o ano da mulher! As mulheres venham a levar o santo símbolo
até o andor”. E o prefeito e os políticos se mandaram envergonhados e nunca
mais ousaram apresentar-se para levar a santa imagem.
Sempre penso, porque o Círio é
tão majestoso, mais de dois milhões de pessoas? É muita coisa. É mesmo iniciativa
dos padres que convocam os fieis? Não credo. No Círio quem toma iniciativa é o
povo. O Círio não começou por iniciativa da Igreja, mas pela devoção do povo à
Nossa Senhora. A Igreja assumiu muitos
anos depois. Para mim isso deveria mudar o conceito que temos de Igreja feita
de bispos e padres vestidos com batinas e mitras. É o povo mesmo a Igreja, a
Igreja é o povo de Deus, como declarou o Concílio Vaticano II faz 50 anos. Os
bispos proclamaram em Santo Domingo que os leigos são protagonistas na Igreja
para uma nova evangelização. Mas onde está aberto o espaço protagonista dos
leigos/as? Se ninguém abre este espaço, os leigos deveriam, com coragem, tomar
a iniciativa e abrir espaços para eles assumirem o compromisso de batizados
dentro da Igreja. O Círio com dois milhões de cristãos em caminho, na rua, deveria
nos ajudar a assumir este compromisso, é o nosso papel de leigos protagonistas,
mulheres e homens, casados e solteiros, jovens e idosos, morenos e brancos. Disse
o papa que no dia de Pentecostes estavam presentes os Apóstolos e Maria no meio
deles. E Maria, mãe e mulher, era mais importante do que os homens, apóstolos,
padres e bispos.
Papa Francisco enviou uma carta
ao povo do Pará, que dom Alberto leu na TV Nazaré. Ele não escreveu somente
palavras de louvores e de bênçãos, como sempre se faz nestas ocasiões, ele
indicou o caminho novo a seguir: ”Não podemos ficar
encerrados na paróquia, na comunidade, na cúria, nas instituições religiosas,
nos movimentos e nos grupos, quando há tanta gente esperando o evangelho, lá fora,
nas periferias, precisa sair...”. Círio
é caminhada, é sair de uma catedral para chegar numa basílica. Água parada cria
dengue, dizem os ditados populares. Cristãos parados apodrecem!
A procissão do Círio começa na Sé-Catedral
e, depois de uma caminhada de quase quatro quilômetros, chega à Basílica, a
sede da devoção a Nossa Senhora de Nazaré. É sair, é andar..., juntos como
irmãos. Milhões de pés descalços juntam-se. Mãos elevadas ou agarradas à corda
da promessa, em louvor e agradecimento, pedidos de perdão e de novas graças,
barco de miriti, a casinha que a fé agasalha na cabeça, os pecados serão perdoados
e a graça será atendida pela força da fé.
Ela é a santa! Nós, o manto! É
Círio. Em cada um, em todos nós. O manto simbolicamente não é preparado por uma
só pessoa, mas é tecido e enfeitado por dois milhões de romeiros, pérolas
preciosas carregadas por Nossa Senhora, como crianças no colo da mãe. Deixem o
Círio nascer mais ma vez em você. Florescem as casas, florescem os corações, os
sorrisos, os abraços, a fé.
Os romeiros
não fazem distinção de raças ou de religião. A Santa irmana todo mundo, todos
filhos da mesma mãe. Li por acaso um artigo que me ajudou a refletir. “A Assembleia
de Deus localizada na avenida Nazaré abriu sua porta e seu coração para
auxiliar quem precisasse de ajuda. Café, pão, água e atendimento médico foram
disponibilizados aos romeiros. Cerca de trezentos voluntários trabalharam... Conta
o Evangelho de João no capítulo quatro, que Jesus teve sede e foi a uma mulher
de Samaria (potencial inimiga) que ele pediu ajuda. O poço era fundo e Jesus
não tinha corda nem balde. Foi essa mulher que teve o privilégio que nenhum de
nós teve: de dar um copo d’água para Jesus, em pleno meio-dia. Foi para essa
mulher que Jesus falou de uma fonte de água que salta para a vida eterna. Foi
pelo testemunho dessa mulher que toda uma cidade se converteu ao Evangelho e
Jesus, paparicado pelos inimigos samaritanos, aceitou o convite de adiar sua viagem e ficar dois dias
inteiros hospedado com eles. Esse relato mexe comigo porque eu gostaria de ter
hospedado Jesus em casa... Às vezes um copo d'água vale mais do que milhares
de palavras... Alguém me perguntaria preocupado: isto não seria um tipo de
ecumenismo? Não. Seria muito mais, seria uma demonstração de amor. Seria uma
forma de sorrir o sorriso de Jesus”.
Vi alguns
cartazes que proclamavam que o “Círio é uma janela aberta para o Céu”. Somos
acostumados mesmo a pensar sempre ao céu, para ganhar a salvação eterna, para
entrar no paraíso. Mas a vontade de Deus é transformar esta terra numa só
família, é fazer deste mundo um paraíso, é fazer acontecer o Reino aqui e agora,
é colocar lado a lado dois milhões de pessoa sem brigas, sem facas, sem balas,
sem drogas, sem violência, caminhando em paz rumo a uma vida melhor, uma vida
mais humana, mais fraterna e mais feliz. Vale uma só palavra, rumo a uma “vida
mais cristã”. Vivo o Círio de Nazaré! Viva o Povo do Pará!
Belém
27/10/2013
Pe. Marcello ZurloDiretor espiritual do GAMIX,
o grupo dos amigos xaverianos